27 de janeiro de 2005

olhar resgatado da folha

Eram 7h00 da manhã e ela não se tinha ainda deitado. Andava acordada pela casa, ia da sala para o quarto, do quarto para a cozinha, comia, lia um pouco mas fartava-se logo das palavras que lhe surgiam oscilantes no papel.
Sentou-se em frente à secretária numa tentativa de escrever algo de seu. Tinha em mente escrever um livro onde guardasse todos os sentimentos, expurgando-os para bem longe do pensamento. Durante um tempo infindável fitou a folha, ainda branca imaculada.
Eram 8h12 e continuava em frente à folha onde tinha agora desenhado o mesmo olho de sempre, rabiscado metodicamente da mesma forma. Primeiro desenhava a íris, depois compunha-a com dois traços que lhe configuravam o olhar, perdido para sempre em inúmeras folhas, por fim desenhava as pestanas e deixava-se observar pelo mundo através daquele olhar.
Resolveu então escrever sobre aquele olho, descrevê-lo, contar a sua história, inventar-lhe um personagem e escrutinar a sua vida, saber que coisas teria aquele olho, vezes sem conta desenhado, vislumbrado.
Após vários desenhos, riscos e rabiscos, descobriu que não conseguia inventar esse personagem, imaginar-lhe uma vida, vendo através desse novo olhar.
Foi então que ouviu o despertador do seu quarto e resolveu despertar dessa apatia em que vivia horas, dias, semanas sem descrição possível de um tempo que já passava, há muito, sem que se desse conta.
Tomou banho e resolveu tomar o pequeno almoço, saindo de seguida ao encontro da sua vida, de um olhar que desse vida a um personagem há muito adormecido, o seu.
Descobriu que lá fora os comboios continuavam a passar, que as pessoas continuavam a seguir apressadas nos seus alucinantes ritmos.
às 9h46 quando entrou no comboio, encontrou um amigo que há muito não via, uma das muitas pessoas de quem havia perdido o contacto. Ele saia na estação seguinte e acabaram por ter apenas tempo para trocar números de telefone, despedindo-se com a promessa de se encontrarem num dia qualquer da próxima semana. Pensou ainda por um instante na razão pela qual teriam perdido contacto pondo de parte todas as suas ambições de um qualquer relacionamento e, apercebeu-se que nunca lhe dera abertura a qualquer avanço para uma maior intimidade impedindo qualquer hipotético romance. Puro medo de viver, foi o que pensou.
Ao longo do restante caminho admirou as pessoas que se encontravam sentadas com o semblante ainda de quem dormia, reparou naquela mãe cujo amor transbordava no olhar pelo seu pequeno ser que jazia num profundo sono a seus braços.
Teve ainda tempo de se lembrar que não havia comprado o bilhete e saiu na estação da Amadora para o fazer. Decidiu então conhecer as redondezas, não que tivesse necessidade, mas simplesmente para saber que lugar era aquele por onde passara tantas vezes conhecendo-lhe não mais que a estação, vista do comboio.
Descobriu, no meio daquele emaranhado de edifícios, um parque, dois até, por onde tivesse passado. Num desses parques encontrou um casal já com alguma sabedoria, acrescida pelo passar dos anos. Estavam os dois sentados num banco verde dando comida aos pombos que os rodeavam em busca do milho que lhes era atirado pela sra enquanto o sr. fumava o seu cachimbo e lia o jornal, parando apenas para olhar carinhosamente a mulher que há muito o acompanhava.
Eram 11h58 quando voltou a entrar no comboio seguindo rumo ao rossio. Apercebeu-se que o olhar das pessoas era agora diferente, mais desperto para um ritmo menos apressado. Ao chegar ao rossio deitou fora o bilhete rindo-se com o facto de não o ter mostrado a revisor algum.
Pensou ainda que tinha valido a pena, pelo facto de ter parado na estação e de saber mais qualquer coisa além do nome do dito lugar.
Atraída por um chapéu de feltro, verde com uma pena azul presa por uma fita de seda e, ainda com o sorriso esboçado, olhou para uma pessoa que lhe retribuiu o olhar e o sorriso seguindo o seu caminho.
Ao chegar à brasileira, onde foi almoçar, ficou a pensar quão invulgares eram, agora, os chapéus que ostentavam as cabeças das pessoas, no tempo em que passeava com o tio pelos jardins de Sintra, numa idade em que tudo lhe parecia maior do que hoje.
Às 14h00, a caminho do S.Jorge, passou na rua do Carmo, parando na Ulisses onde comprou umas luvas que lhe minimizassem o frio que se fazia sentir nas sempre frias mãos, fruto de um problema que tinha, ao que parece causado pela má circulação do sangue. Era o que lhe dizia a voz popular e toda e qualquer pessoa a quem se queixava do problema.
Eram 17h35 quando saiu do cinema, onde foi ver um filme sobre a vida de um realizador francês que sonhara a existência toda com o filme da sua vida sem nunca o ter realizado, e se encontrava agora retratado num filme pela câmara de alguém que encontrou nele um bom assunto para desenvolver uma obra prima do cinema independente.
voltou ao comboio, desta vez com bilhete comprado, e deixou-se levar pelo sono, acordando com o sinal das portas em todas as estações que iam deixando os lugares a seu redor vazios de pessoas cansadas por mais um dia de trabalho.
no caminho para casa passou ainda pela geladaria, comprando um gelado de limão e avelã, os seus sabores favoritos, gostava de comer gelados nos dias invernosos sentindo o frio entranhar-se-lhe pelo corpo, desde que as mãos se mantivessem quentes.
Chegada a casa, deu comida aos peixes e sentou-se em frente ao televisor acompanhando as noticias do 2º canal, a seu ver menos sensacionalistas que as passadas nos outros canais. Voltou a soltar um sorriso quando soube da greve dos revisores, por uma qualquer causa que já não ouviu interrompida que foi pelo toque do telefone.
Do outro lado da linha, ouviu uma voz ligeiramente familiar de um numero que desconhecia, sou eu o Renato, disse a tal voz. Antes de se despedir ainda combinaram um lanche dai a 3 dias com encontro marcado em Sintra numa casa de chá Despediu-se com uma estranha pergunta feita ao amigo, querendo saber se gostava de cachimbos.
Olhou para a folha e tinha desenhado um homem de chapéu a fumar.
Ao levar a folha consigo, percebeu que tinha no bloco várias folhas rabiscadas com o mesmo olho de sempre.
Conseguira então soltar o olhar e ver além das folhas em branco onde repetidamente se perdia.
Jantou uma lasanha, feita com a receita que a avó lhe deixara num caderno preto onde também constavam uns poemas a si dedicados, e soltou uma lágrima de emoção.
Eram 22h15 quando se deitou, adormecendo ainda de luvas calçadas.
No dia seguinte acordou, para um novo dia, cheia de calor nas mãos, voltou ao trabalho que se acumulara com o tempo passado em redor de um tudo em que nada fez.
Saiu de casa apenas para ir comprar milho, regressando à sua tese apoiada nas teorias do caos, reflectindo sobre o tempo e o espaço no mundo virtual.

6 comentários:

Marta disse...

Gostei da tua volta e muito do teu conto. Beijo

Anónimo disse...

Fikei estarrecida e colada ao ecrã, sem conseguir descolar um só momento. adorei a forma como escreves e acredita que vou voltar aki mais vezes so para te ler.

Beijos de uma fada q vai voando por aki

Fairy - www.fairytaledream.pt.vu

a disse...

há dias perfeitos! gostei muito!

Anónimo disse...

Sabe o que me lembrou esse seu texto? Um daqueles filmes do kielowiski, e claro, a personagem a Irene Jacob, imaginei assim...Adorei o conto, acho q vc deveria publicar mais deles por aqui! Ah! vc recebeu o orkut que te enviei?
Bjs.

Anónimo disse...

Sabe o que me lembrou esse seu texto? Um daqueles filmes do kielowiski, e claro, a personagem a Irene Jacob, imaginei assim...Adorei o conto, acho q vc deveria publicar mais deles por aqui! Ah! vc recebeu o orkut que te enviei?
Bjs.

Cris.
http://www.egoconfession.zip.net

Mar disse...

Fico feliz com o teu regresso bruno, por finalmente assassinares o silêncio deste blog de que tanto gosto. E com um texto magnífico! Parabéns.