30 de janeiro de 2005

exacto!!

Ele viu-a pela primeira vez na rua, cruzou-se com ela no meio da multidão. Estavam os dois alheios a tudo e a todos até ao momento em que fugidos da chuva, caída repentinamente, se abrigaram num mesmo vão de um prédio já com marcas, da passagem do tempo, na pintura. Olharam-se e riram-se por estarem os dois abrigados num espaço exíguo e por serem dos poucos que ignoraram as previsões deixando em casa os chapéus de chuva. No fundo nenhum dos dois acreditava muito na veracidade das projecções climatéricas. Estiveram ainda um bom momento até trocarem as primeiras palavras. Falaram do tempo, não fosse esse o assunto quando outro não emerge. Está de chuva, disse ele, de seguida pensou quão estúpido tinha sido por o ter feito. É, disse ela. E este não é o melhor dos abrigos, a chuva ainda nos vai molhando, continuou.
Numa atitude cavalheiresca cobriu-a com o seu casaco enquanto corriam até ao café um pouco mais adiante, perto da entrada para o metro. Entraram e sentaram-se ali um pouco até que a conversa surgiu fluida e sem quaisquer referências ao tempo que se fazia ou não sentir. Falaram de assuntos corriqueiros como duas pessoas que foram apresentadas por um amigo em comum e, acabaram por descobrir que até o tinham. Ambos eram amigos de um tal de Tiago, namorado da Filipa, prima dela e colega de trabalho dele.
Afinal, já tinham estado os dois num mesmo jantar de anos, do Tiago, mas não chegaram a conhecer-se, ficaram sentados em lugares distantes.
Agora, encontravam-se os dois sentados, à conversa, esperando que o tempo passasse levando consigo o mau tempo que os colocara à distância de uma mesa.

-bem me parecia conhecer-te, mas não disse nada porque essa é uma daquelas frases batidas e aplicadas em engates que tive receio de ser mal entendido e pensasses que estava só a tentar meter conversa.

-não te preocupes, depois de me teres dito que estava chover, fiquei preparada para te ouvir dizer tudo.

-enfim, queria falar contigo porque a tua cara me era familiar e não sabia como. Disse a primeira coisa que me veio à cabeça.

-por um momento pensei que fosses uma daquelas pessoas que gosta de ler os letreiros das lojas em voz alta, e que fala do tempo porque não tem nada para dizer mas não consegue ficar calada.

-estamos aqui há horas e ainda não voltei a falar do tempo. É engraçado!!

-é engraçado? o quê?

-como nós, dois aparentes desconhecidos, acabámos por ter uma conversa destas descobrindo que até já nos podíamos ter conhecido numa outra ocasião.

-o mundo é pequeno!!

-é!

-já reparaste que dizemos é em sinal de aprovação por uma qualquer máxima do vernáculo quotidiano?!

-É sinal de não termos nada a acrescentar ao que já foi dito.

-é?!

-esse é é diferente, põe em causa o que foi dito. É totalmente diferente do é que disseste quando te fiz aquela magnifica observação.

-é mas...

-espera aí, este é é diferente, tem um mas... é sinal de que vais anexar uma condição... desculpa estou a entrar no reino da baboseira, ias a dizer?!...

- olha nem sei, não me lembro.

- talvez te lembres mais daqui a pouco.

-talvez!

-este talvez é igual ao é, apenas uma repetição do que se disse antes. Logo uma concordância.

-ou talvez não. O termo talvez é em si dúbio. Não concorda nem se opõe ao que foi antes dito, deixa no ar a resposta, transporta-a para um outro tempo.

-sim, deixa a conversa em aberto.

-mas o significado de talvez também depende.

-sim, depende. Dependes de alguma coisa para responderes talvez a alguém. Faltam-te dados para poderes responder afirmativamente ou em negação a algo.

-exacto!

-olha um é, mascarado.

-pois é!

-pois é?! Isso é uma repetição. O pois em si já é um é, escusas de o repetir!

-estou a ver que somos os dois iguais.

-não existem seres iguais. Semelhantes sim. Iguais duvido muito.

-a verdade é que estamos aqui os dois pelo mesmo motivo, com amigos em comum, numa estranha conversa em torno de qualquer coisa que ainda não entendi bem. Os dois à espera que o tempo melhore.

-mas eu gosto de chuva, apenas não gosto de ficar com a roupa toda molhada.

–eu não me importo muito, mas hoje sim. Tenho uma entrevista para um emprego daqui a 2 horas e não queria chegar lá neste estado.

– realmente não ias causar boa impressão. Por outro lado, ficas com um ar selvagem um pouco louco demais, mas apelarias à caridade de quem te vai entrevistar, veriam que tu te esforçaste por chegar ali e que nem a chuva te impedira de o fazeres. Veriam que foste atingida por inúmeras gotas numa revolta pegada e que bastava de sofrimento por um dia, dando-te o emprego como prémio de vitória sobre o tempo.

- és uma pessoa doida.

- sim mas tu também o és.

– mais uma coisa em comum, estamos unidos pelo tempo, pela loucura e pela falta de um guarda chuva.

- lá estamos nós a falar do tempo, matando o tempo até que mude.

- pois!!

- é!!

- matámos a conversa. Dissemos o é e o pois.

- pois foi!

- ou pois ou foi, ou o mascarado exacto!!

- olha, parou de chover!!

- olha, pois parou!! Vou andando porque quero chegar a tempo à entrevista.

- eu também vou andando, vou ter com uma amigo que anda a escrever umas crónicas. Disse-me que não tem ideias e depois de amanhã o texto tem de ser publicado.

Estava a tentar escrever qualquer coisa, mas as palavras estavam perdidas no meio da sopa de letras, quando ouvi a campainha. Era ele e vinha todo entusiasmado com uma pessoa que tinha acabado de conhecer. Eu não estava bem e acabei por me perder no meio de tanto diálogo, de tanta frase repetida de um enredo passível de constar num qualquer romance de algibeira. Disse-lhe que tinha de escrever a crónica, umas quantas vezes, mas continuou a falar-me do encontro maravilhoso que tinha tido. Deixei-me levar pela conversa, acenando a cabeça e dizendo pois ou é, aqui e ali.
Vê lá tu que ela conhece o Tiago, disse ele continuando a falar-me das coincidências.
Rematou com, o mundo é pequeno!! Pois é, disse-lhe eu.
É isso mesmo, disse-me, entendeste tudo, a conversa andou à volta disso.
Pensei, à volta de quê? Mas fiquei calado para não dar azo a mais 2 horas de conversa. Saiu de casa e antes perguntei-lhe se queria levar o chapéu de chuva, porque tinha ouvido no telejornal que ia chover hoje, o dia todo, piorando com o chegar da noite. Disse-me que não acreditava nas previsões das noticias e seguiu apressado, tinha ficado de se encontrar com ela nessa noite para irem comprar um chapéu de chuva. Tu és doido!!, ainda lhe gritei enquanto descia as escadas. É isso mesmo, entendeste tudo, respondeu-me antes de se perder no meio da chuva que se fazia novamente ouvir em gotas orquestradas.

2 comentários:

a disse...

eu tenho saudades da chuva... gosto da forma como misturas romances com conversas nonsense.

Anónimo disse...

oi Bruno! recebemos sim seu mail e ficamos super felizes com o que vc falou! enviei agorinha uma resposta ao seu mail! Depois responda dizendo se recebeu!

Cris.